24/05/2008

o navio

Passei semanas em um navio e agora estou de volta. Mudei de idéia e de dor, sou uma novidade para mim e sou minha única provocação. Tenho um rosto um pouco pálido. O tempo que passei dentro do navio foi silencioso demais, o que me obrigou a ouvir meus próprios ruídos. Eu ria, à medida que ia entendendo. Talvez, em outro lugar eu tivesse chorado, mas no navio não. Qualquer notícia nova sobre mim sempre fez revelar a minha perdição, e algumas vezes eu sofri, mas ali, no navio, era como se eu tivesse morrido, escapado, e eu só enxerguei as vantagens de ser quem eu sou. Em volta de mim só havia o mundo, e o mundo, nesse caso, era o mar, o céu e o vento, muito vento. Estava ali há um bom tempo quando me dei conta de que já não estranhava mais aquela realidade, e pela primeira vez a minha lucidez não me espantou. Eu passava os fins de tarde na ponta do navio, como pode o céu ser azul? Como? Era o que eu pensava. Eu olhava o mar em volta de mim e pensava que se eu quisesse eu poderia me jogar. Tudo é somente se eu quiser, foi com esse pensamento que saí do navio. Não posso dizer que simplifiquei minha vida ao entender isso, mas agora eu aceito melhor o infinito. Eu nunca mais quero entrar em um navio, não combino com o mar, mas eu precisava ter estado ali junto às coisas que não acabam. Tenho inveja das pessoas que permitem que outras façam delas o que quiserem. Eu gostaria de poder descansar um pouco, saber deixar que outros me tivessem conforme suas vontades. Eu queria que me batessem. Gostaria de não precisar dizer muita coisa, mas não há retornos quando a escolha que se fez já existe há muito tempo, há muito tempo eu sou a mesma e, portanto, não alimento certas esperanças. Gosto do que me tornei, embora seja embaraçoso. Gosto de saber que tenho noção do meu fim e do que jamais serei. No navio a minha tristeza foi modificada e eu percebi. Para sempre eu estarei dentro daquele navio no meio do mar indo para o nada, sempre estive, aliás. Mas eu não sabia que era tão simples assim. Eu entendi que também é preciso não entender. Uma tarde, deitada ao sol, me dei conta de que nada é mais questionável do que tudo o que sempre existiu. É comovente. Depois do navio eu abandonei a puerilidade a qual estava presa. O que se pode afirmar é que o céu sempre estará no mesmo lugar em qualquer lugar que se vá, a chuva sempre virá e não há vento que desista nem raio que não aconteça, e se nós nos acostumamos a esse mundo lúdico e servil não há então espaço para dúvidas. Tenho a impressão de que entendemos tudo errado, no navio pude compreender isso com muita clareza. Passei tempo demais percebendo as coisas incertas e o que eu fiz de mim já não morre, mas tenho novidades, estou um pouco encantada com o que pude conhecer a partir do que já sou. É mais tranqüilo agora, é confortável entender que não sou nada diante do interminável. Eu vou terminar da maneira que eu escolher terminar, agora eu sei isso. Eu poderia ter terminado no navio, maravilhada pelo céu anônimo e azul, podia ter encontrado uma maneira de não voltar, era tão fácil eu me afogar. Mas eu escolhi voltar e viver conforme o que aprendi no navio. A vida é boa e não é séria e nem tão grave, como eu acreditava antes. O amor existe e a falta dele também, mas isso são apenas dois extremos entre muitos. Não há quem dê ou receba de outro o que quer que seja, amamos ou odiamos para nós mesmos, é em nossa própria defesa que desejamos sentir alguma coisa. Não há o que pensar, não há. Está tudo aqui, está tudo pronto, poderíamos nos deitar ao sol e apenas esperar. Não existem novidades, a não ser as íntimas.

2 comentários:

ivana debértolis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcos Martins. disse...

bom, como kafka, triste alegre, tocante. bjs