As noites atrozes finalmente haviam ficado para trás, era o que ele pensava enquanto arrumava sua cama naquela manhã. Singelos sonhos freqüentavam seu sono entregue e devoluto. Movimentos banais tomavam ar de novidade, fechar os olhos e depois abri-los e não se assustar com o pânico das horas iminentes era quase um luxo, uma mordomia. Era bom viver, era bom, dizia pra si mesmo em voz alta, apoiado na grande janela aberta de seu quarto agora limpo e inundado de boas promessas. Tinha o peito, os olhos, a boca e os cabelos absolvidos, o perdão havia chegado até ele. A cada minuto uma nova sensação esquecida. Embebedava-se em tanto reencontro.
Ele, que tantas vezes julgou não ter espaço suficiente em seu corpo para abrigar tanta aflição, percebia agora faltar-lhe o mesmo espaço para tamanha euforia. Eram tantas as vontades e desejos que suas mãos não se mantinham quietas, os ombros tranqüilos confirmavam a desistência de toda agonia dos dias passados. Entendeu, naquela manhã, a necessidade que as pessoas têm de gritar quando estão extasiadas, embriagadas em contentamento. Tinha, enfim, o corpo inundado de infinitas possibilidades. Era um homem possível naquela manhã preciosa. Tinha uma beleza que, mesmo nos dias ruins, não o havia abandonado. Seu rosto indiscreto e seu olhos de cobiça nunca deixaram de insistir. Tinha olhos comíveis. Agora, voltava a saber de seu próprio fascínio, queria de novo plantar suas mãos num pedaço gostoso de carne e emprestar sua delícia com generosidade e avidez. Existia alguma violência em seus gestos e seus apertos. Embora se sentisse doce naquela nova vida, tinha nos braços um abraço quente, tinha um suor quente, e dedos hábeis conhecedores de caminhos. Eu, de longe, espiava passiva e fazia planos para aqueles dedos hábeis. Ansiava por queimar-me naquele corpo novo, febril, violento e doce. Era um segredo meu. Em silêncio desejava aquelas pernas me apertando, comprimindo meu sangue e puxando meus cabelos.
Ele se sentia devolvido a vida e eu fazia planos de devolver-lhe ainda mais, um susto atrás do outro é o que pretendia lhe oferecer. Espasmos, câimbras e calor. Eu chegaria na hora certa, com o cheiro certo e o silêncio exato de um corpo faminto e engolidor. Eu me jogaria, empurraria meus olhares vulgares sobre sua pele doce e voraz e gritaria em seus ouvidos curiosos. Espalharia-me em sua fome.
Um comentário:
então é o segundo muito bom , parabéns, lindo.
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