07/11/2008

o eu

tudo era muito vermelho, só vermelho e eu duvidava, cambaleava esfregando os olhos com ambas as mãos. era tudo verdade. me sentei, abri a janela, a menor de todas, espiei o que já não era mais meu. o meu lugar agora era este e no chão haviam três sapatos vermelhos que logo me apossei. são meus. vão combinar com todo o resto, pensei. haviam deixado também alguns bilhetes, espalhados e escondidos, que fui encontrando aos poucos. eram recados íntimos e indecentes, ordens e pedidos que ignorei. móveis pouquíssimos: uma cadeira vermelha, uma meia cama vazia e um quadro abandonado no chão, onde, observando bem , podia-se ver um beijo desfocado. na parede, também vermelha, lia-se uma palavra: eu. fixei meus olhos no eu da parede vermelha, comecei a entender o possível significado de minha presença ali, naquele espaço exíguo e tão alheio. estava escrito em branco em letras simples e legíveis. já não me sentia tão incomodada, o que me deu coragem para abrir também a janela maior, a maior de todas. abri. não havia nada lá fora, nada que me prendesse além do vento que limpava o ambiente. era o eu da parede que me segurava agora, e comecei a reconhecer as vantagens do lugar vermelho e inóspito. eram muitas as vantagens. o eu da parede me fazia companhia, minhas horas embebiam-se em tamanha descoberta. que susto bom! a cadeira vermelha passou a me ser útil, e o fato de ser vermelha desculpava toda sua falta de conforto. coloquei-a em frente a parede do eu, sentei-me, e enquanto mexia em meus cabelos fazendo nós engraçados e depois desmanchando-os, lia aquela sílaba como se ela demorasse mais que uma sílaba. muito mais. pensei no fim do mundo, sempre penso sobre isso nas horas mais bonitas intensas eternas sozinhas reveladoras minhas. o eu da parede me revirou em êxtase. dentro de mim nunca havia entrado nada parecido, tantas cócegas e o meu contentamento não seria explicável com palavras que já exitem. eu teria que inventar se quisesse, mas eu não precisava de palavra nenhuma além do eu da parede. comecei a chorar, não era tristeza, ou melhor, era, mas não essa de significado vulgar e tolo. não. era uma felicidade incomparável em minha vida naquele instante, naquele vermelho inundado pelo eu branco. resolvi calçar um dos sapatos vermelhos, ficaram lindos em meus pés. tirei toda minha roupa e mantive os sapatos. meu corpo branco combinava com o eu da parede que combinava com meus sapatos novos. eu não queria ir embora dali, nunca mais, nunca mais, nunca mais ninguém me tira daqui, eu gritava. não vou sentir fome não preciso de nada façam de conta que morri, me esqueçam, eu já não serviria mesmo mais para ninguém, não preciso de ninguém. eu tinha uma sílaba, uma cadeira, uma meia cama e três pares de sapatos novos da minha cor preferida. eu e o eu escrito na parede nos tornamos cúmplices e com o passar dos dias e noites começamos a correr perigo juntos. comecei a desejar o eu sem a parede junto e o eu também não queria mais viver colado nela. eu estava apaixonada pelo eu da parede e o eu da parede também me queria, mas ele era da parede, não meu. a parede, vermelha que era, passou a ficar ciumenta e não me queria mais lá, me mandou vestir a roupa e ir embora, os sapatos, disse ela, eu podia levar. pedi pra ficar, implorei e ofereci dinheiro. não adiantou. mas ela não amava o eu, ela só não queria que ele fosse embora para ser meu. pedi mais uns dias e ela me deu três, depois disso rua. dediquei meus três dias a fazer promessas para o eu que era da parede e que não queria mais ser. tive que ir embora.

3 comentários:

Anônimo disse...
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Braga e Poesia disse...

o eu é sempre de um outro que nem sempre quer acordo.

laura caselli disse...
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