27/09/2010

breve história possível

podia escolher, mas optou por tomar aquela chuva. logo na saída do supermercado pôde ver a água encharcando a noite generosamente. deu o primeiro passo em direção a rua. pensou em acender um cigarro, mas logo viu a inutilidade do gesto. estranhou-se. ele, sempre tão comedido em seus atos, tomava chuva num começo de noite de terça-feira. alegrou-se de uma alegria simples e desconhecida. imaginou ser este o sentimento das pessoas descompromissadas com a seriedade da vida e seus rumores. invejou-as por um instante. deleitava-se em sentir-se tão finitamente outro. sim, iria acabar. não poderia perder-se de vista, não ele. era o que intuia. o caos tomava conta das ruas e ele se divertia torcendo para que sua casa misteriosamente se tornasse um lugar longe, podendo assim estender sua extravagância. e se alguém me ver? sentia a espinha esfriar. era um pecador de si mesmo em uma noite quente e desprotegida. pensou em sua mãe. lembrou de seu olhar enquanto explicava a ele sobre todos os medos que nunca deveríamos ter. e pensava que, só por isso, ele possuia todos. a excentricidade alheia o apavorava. era das pessoas e suas perguntas que ele se escondia e, por tanto se esconder, esquivou-se de todas as possibilidades de se tornar, um pouco que fosse, feliz. a chuva aumentava e vinha agora acompanhada de relâmpagos. uma beleza de noite, rodopiando entre a clareza e a escuridão. combinava com ele. sorria pra dentro de si e degustava excitado seu prazer passageiro. passou por sua cabeça ter descoberto alguma novidade enquanto se molhava, mas, por preguiça ou medo, não deu sequência a tal pensamento. sua chegada se aproximava, já podia avistar a janela fechada de seu apartamento. era sozinho por escolha e medo. sempre o mesmo medo. eram íntimos, ao mesmo tempo em que se evitavam. o mais coerente seria que ele, como todos em sua volta, estivesse tentando escapar do mal tempo. mas ele tinha esperança. esperança de quê? não sabia. gostaria apenas de eternizar este momento de entrega vã e descabida. mas o fim veio rápido, já se encontrava em frente ao prédio onde morava. deu adeus às suas vontades sem coragem, chacoalhou os cabelos e entrou. era um homem grave, mas, ainda assim, ela estava disposta a oferecer a ele o seu amor. em segredo, o salvaria.

Um comentário:

Leandro Correia disse...

muito bom ... quando li 'a chuva aumentava e vinha agora acompanhada de relâmpagos.' ... estava relampejando por aqui heheheh ...

até ...