17/03/2017

Sarjeta

Chorava sentada no chão sujo da rua, entregue ao público passante curioso de sua dor. Doía uma dor escura e lamacenta sem vergonha de ser dor. Chorava o horror e todos os pensamentos que não floresceram jamais, todos os seus desejos desembrulhados no asfalto, sem serventia. Toda a sorte desprezada estava agora ali, reunida em um corpo pequeno e forte, agora solto no espaço, tomado por sentimentos que não passam nunca. Sobreviveria, mas não agora. Neste instante era apenas o fim, um tiro no peito cheio de amor estragado. Não me venham com palavras idiotas, ela não vai acreditar, disse alguém tentando ajudar. Já conhecia este lugar, era esta sua família e a casa onde morava, mas a cada vez era uma novidade, o paraíso e o inferno em comunhão, trazendo todo tipo de consequência e todos os erros e acertos no mesmo lugar desamparado de sempre. Que cansaço sentia. Se chovesse seria bom, um refresco talvez, mas era uma noite bonita e sem significado. Uma noite filha da puta. Se pudesse se levantar, partiria pra longe, andaria sem rumo até chegar em outro lugar, até ser outra pessoa que não esta de agora, conversaria com estranhos, sentaria no colo deles, mentiria e tomaria uns drinks num bar de estrada. Sempre prometeu amor às pessoas erradas e sempre cumpriu suas promessas, até cair no asfalto e chorar de ódio e dor. Mas nunca culpou ninguém, nunca, os outros que se fodam.
Talvez estivesse doente, sim, provavelmente estava doente e às vezes até que gostava de se sentir assim, ir tão baixo era também uma oportunidade, um julgamento individual tinha lá sua utilidade, olhar pra trás e pra frente de uma só vez e reconhecer o valor que a maioria das coisas não têm. Que doesse, que toda a merda viesse à tona, que fosse um mergulho sem volta. Não seria uma pessoa melhor depois disso, isso não existe, não é verdade e a vida não acontece assim, é apenas algo que os outros dizem pra que você os deixe em paz e não os lembre que também estão perdidos. Se livrar de toda essa esperança é o grande trabalho, é o que, depois de alcançado, pode trazer algum conforto pra seguir até o fim mais próximo, mas não se alcança, não se alcança nunca.
O chão continuava firme debaixo de seu corpo entregue, de vez em quando passava algum idiota e dizia algumas bobagens. Esse é o problema das pessoas. Mas não via nem ouvia nada, a dor e a raiva impediam qualquer contato ou reconhecimento. E a chuva que não vinha. Que noite filha da puta e eterna. Que céu grande em cima de mim. Que inferno quente. Alternava entre se contorcer de dor e dormir um pouco, dormir sem sonhar. Que luxo seria sonhar no asfalto numa noite bonita e filha da puta.
Entre a dor e a calma passageira, delirava. Em delírio imaginou uma daquelas lâmpadas mágicas da ficção onde você se esfrega e aparece um homem bonito e forte e te concede três desejos. Ria alto e sem parar. Que ideia ridícula. Se esfregara a vida toda em homens fortes, bonitos, feios, fracos, vorazes, famintos e sem vida. Todo tipo. Quase todos amadores e sem desejos a oferecer. A vida é muito pouco sempre, e quando é demais te joga no chão, te lambe e te faz pensar esse tipo de coisa. Que estupidez sem fim. 
Uma hora esta noite filha da puta irá terminar. Mas tinha o compromisso de levá-la consigo pra onde fosse, pra não se esquecer das descobertas, da raiva, da dor e do jeito errado de sentir amor. Pra sempre estaria doente, uma vida só não lhe ofereceria tempo suficiente pra se recuperar. Quem se recupera da vida? Não sei, não me interessa. Talvez precisasse de outras chances e de algumas noites bem dormidas fora do chão, mas isso não era uma opção. Estaria pra sempre ali, deitada no chão debaixo da noite inútil. E tudo bem. Isso também era um caminho. Talvez não para os outros, mas os outros que se fodam.

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