11/07/2012

para não acabar


começou com um bilhete em branco deixado debaixo da porta. era um mistério com cheiro e textura. arrumou as malas, fechou as janelas, trancou as portas e se escondeu sem respirar. fugiria assim que amanhecesse. correu dos dias e devolveu o bilhete, não cabia ali uma história, pensava, tola e desprevenida. mudou de assunto, cantarolou uma música em outra língua e tentou despistar o tempo com argumentos não confiáveis. sem que pudesse perceber, primeiro entregou o braço, o esquerdo. uma semana depois, ofereceu o direito e as duas mãos e os dedos. o tempo não queria opinião e se ocupava em lhe desorientar e, cega, entregou os olhos e os cabelos. passou a confundir a alegria de então com alguma outra novidade impalpável. medrosa e distraída, demorou pra reconhecer o cheiro daquilo que não poderia levar outro nome. numa noite, voltando pra casa, seu pescoço foi levado, sua pele fina se desmanchou e foi com o vento, e assim, mais uma parte sua a deixava. enfraquecia a cada dia novo e o sangue excessivo dava sinais, teve febre por dez dias. por vontade própria, acabou por entregar os pés e as coxas das duas pernas. que a levassem, então, para onde não queria ir sozinha. conforme o medo diminuia, ia entregando os pensamentos, os bons e os maus. nesse momento já pensava em pedir o bilhete de volta e desenhar nele alguma coisa em vermelho. poderia voltar, pensava, uma vez que ainda não havia ido realmente. e queria mesmo voltar, nem que fosse pra recuperar seus membros que lhe faziam tanta falta. a cabeça já não parava mais em casa, passava os dias na rua vasculhando possibilidades de se convencer na volta. a noite, a cabeça lhe fazia propostas até que pegasse no sono sem responder ou definir. estava cansada, a cabeça, e só não havia lhe deixado ainda, pois, terrivelmente, precisava dela para existir. certa noite, em sonho, encostou sua boca em uma superfície quente que não soube identificar nem lembrar depois.  não pôde mais dormir nem levar os dias como antes. faltava-lhe o sossego e partes do corpo. já não era. já não tinha. mas queria e, portanto, a condição era que fosse buscar tudo de volta e dar o resto. então foi, e assim seu coração foi roubado.

3 comentários:

Lelle disse...

Belo

Anônimo disse...

Adorei seu blog e suas produções. Fiquei interessado em lhe conhecer me adciona no msn: wisleykid_musica@hotmail.com

Anônimo disse...

Não para , por favor ! Leio sempre...