começou com um bilhete em
branco deixado debaixo da porta. era um mistério com cheiro e textura. arrumou
as malas, fechou as janelas, trancou as portas e se escondeu sem respirar.
fugiria assim que amanhecesse. correu dos dias e devolveu o bilhete, não cabia
ali uma história, pensava, tola e desprevenida. mudou de assunto, cantarolou
uma música em outra língua e tentou despistar o tempo com argumentos não
confiáveis. sem que pudesse perceber, primeiro entregou o braço, o esquerdo.
uma semana depois, ofereceu o direito e as duas mãos e os dedos. o tempo não
queria opinião e se ocupava em lhe desorientar e, cega, entregou os olhos e os
cabelos. passou a confundir a alegria de então com alguma outra novidade
impalpável. medrosa e distraída, demorou pra reconhecer o cheiro daquilo que
não poderia levar outro nome. numa noite, voltando pra casa, seu pescoço foi
levado, sua pele fina se desmanchou e foi com o vento, e assim, mais uma parte
sua a deixava. enfraquecia a cada dia novo e o sangue excessivo dava sinais,
teve febre por dez dias. por vontade própria, acabou por entregar os pés e as
coxas das duas pernas. que a levassem, então, para onde não queria ir sozinha.
conforme o medo diminuia, ia entregando os pensamentos, os bons e os maus.
nesse momento já pensava em pedir o bilhete de volta e desenhar nele alguma
coisa em vermelho. poderia voltar, pensava, uma vez que ainda não havia ido
realmente. e queria mesmo voltar, nem que fosse pra recuperar seus membros que
lhe faziam tanta falta. a cabeça já não parava mais em casa, passava os dias na
rua vasculhando possibilidades de se convencer na volta. a noite, a cabeça lhe
fazia propostas até que pegasse no sono sem responder ou definir. estava
cansada, a cabeça, e só não havia lhe deixado ainda, pois, terrivelmente,
precisava dela para existir. certa noite, em sonho, encostou sua boca em uma
superfície quente que não soube identificar nem lembrar depois. não pôde mais dormir nem levar os dias como antes.
faltava-lhe o sossego e partes do corpo. já não era. já não tinha. mas queria e, portanto, a condição era que
fosse buscar tudo de volta e dar o resto. então foi, e assim seu coração foi
roubado.
3 comentários:
Belo
Adorei seu blog e suas produções. Fiquei interessado em lhe conhecer me adciona no msn: wisleykid_musica@hotmail.com
Não para , por favor ! Leio sempre...
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